Sunday, June 19, 2011

O corredor

            O corredor é longo, tão longo que não consigo ver o fim. Até ver uma porta ao longe, conto trinta, cinqüenta, cem, duzentos, trezentos passos. Mesmo assim parece tudo tão distante...

            O corredor branco é bem iluminado, mas é com um olhar tenebroso que as estátuas me vigiam... Mesmo assim, seus olhos de pedra refletem exatamente o que o templo em preto e branco exprime agora perante meus olhos: paz, inexpressividade. O lugar é calmo, sereno... Nada se move. O ar parece suspenso como se o Tempo ele mesmo tivesse parado para marcar a ocasião. A atmosfera, de tão pacífica, tão serena de modo quase arrogante, é praticamente um insulto ao sofrimento que por aqui passa... Seu silêncio, uma afronta aos gritos de angústia do Dmitri...

            Meus passos ecoam pelo corredor, quebrando o silêncio de modo quase mais perturbador que os gritos de meu amigo.

“Dmitri...”

            No início, não ouso clamar mais alto. Sinto-me como se fazer barulho em meio a esse ar de paz imponente fosse um pecado; como se o feitiço fosse se quebrar e subitamente tudo explodiria ao redor de mim, trazendo-me de volta à realidade...

            Mas conforme passo por portas e portas, subindo escadas, descendo escadas, dando voltas em corredores, sem nunca parecer chegar mais perto, meu desespero cresce, junto com o ardor dos urros.

“Dmitri!”

            Ainda assim minha voz soa fraca se comparada ao silêncio ensurdecedor. Já não ouço meus passos, os gritos eles mesmo parecem distantes. Sinto-me como se estivesse chegando ao meu destino, entretanto...

“DMITRI!”

            Dessa vez, assim que minha voz explode pelos corredores vazios, os gritos param. Ouço o triste pranto, suave, dolorido. A última porta se abre...

            Dmitri. Aquele que eu tanto admirava, admirei, admiro. Quando jovens, sempre sabia me dizer o que fazer... Sabia a diferença entre o certo e o errado, sabia a explicação para tudo, para o que tinha acontecido e para o que havia por vir, sabia tudo o que houvesse para saber... Nunca Hijiri me passara essa impressão. Hijiri, que nunca mais vi depois da explosão. Hijiri, a parte emocional da amizade. Mas Dmitri, a parte racional, a parte que agora mais me importa... Por que está chorando...? Como pode se entregar a algo assim, arrancando seus cabelos, arranhando suas faces, destruindo suas escamas?

“Dmitri, pare.”

            Não faça isso consigo mesmo, Dmitri; não faça isso comigo. Sinto meu coração apertar. A realidade que vivemos é apenas a que queremos ver, você acabou de aprender isso à maneira mais difícil...

“Era tudo mentira! Nunca existiu! Todo esse tempo....Todo esse tempo, uma ilusão! Um nada! Por que ninguém nunca me disse, se eu via o que ninguém via? Por que não me avisaram como os olhos, os ouvidos, os sentidos, o coração podem enganar nossas mentes?”

            Talvez seja egoísta de minha parte dizer isso, mas ouvir sua voz me causou um certo alívio. Ouvir algo que não fosse seus gritos e choro me certificava de que o Dmitri que conheci ainda existia...

“É um presente de nossa ascendência, Dmitri. Somente com o tempo aprenderá a ver a diferença entre o real e o que sua mente lhe diz que é real...”

            Dói-me dizer isso. Dizer a alguém que sempre soube tudo, que no fundo, não sabe nada. Sofro ainda mais com o pensamento de que se não fosse pelo nosso parente em comum, nada disso estaria acontecendo. Dmitri enxergaria as coisas como são... Não como sua loucura lhe diz que são. Pois é isso que é, louco... Mas são ou insano, eu estarei aqui para ajudá-lo, e é isso que lhe direi... o que precisa ouvir agora...

“Não se atreva a falar disso! Como se soubesse de qualquer coisa! Você não passou por isso... Não é como se sequer se importasse, você a vida inteira só viveu de arruinar a minha!”

            Suas palavras mostram que já não pensa mais. A parte racional se foi, ao contrário do que eu pensava... mas talvez não seja tão mal assim... Todos, no fundo, somos desse jeito.

            E ai de mim, Dmitri, se falasse disso sem ter passado por isso. Não nego que não tenha sido exatamente a mesma coisa, mas posso lhe dizer que quando comecei a duvidar de meu próprio amor, assim como você agora duvida de sua própria realidade, sofri como você...

“Dmitri, você sabe que eu não fiz de propósito. Nunca quis o Império, e se eu o traí, foi justamente para que o próximo na linha o herdasse. Nunca quis esse poder maldito também, ele me destruiu quase como você diz que eu te destruí...”

“Você matou o Derkath! A única pessoa que me suportava! A única pessoa em quem eu podia depender, a única pessoa real para quem eu não devia dizer o que fazer toda hora, a única pessoa que realmente podia me ajudar....”

            Suas palavras me ferem. Mas suponho que entendo sua dor,  a de não ter em quem confiar plenamente, de não ter a quem entregar-se à procura de conselhos... Não ter quem o proteja, quando tudo o que faz é passar a vida protegendo os outros. Não ter quem te suporte, quando todos dependem em você. Eu também fui um desses, que dependia de você, mas vendo-o assim, prometo que serei também alguém em quem possa confiar.

“Eu não sabia que você se importava tanto com ele... Não sabia nem que você estava vivo! Se eu soubesse, juro que nunca teria feito isso... Teria encontrado algum outro modo de me ajustar com ele, mesmo que ele continuasse tentando destruir aquilo que me era precioso, para que não acabasse te ferindo também... Não queria deixar você na situação em que deixar o Derkath vivo me deixaria...”

            Aproximo-me e a profundidade de suas feridas fica mais clara. O sangue mancha suas vestes outrora imaculadas, uma pálida reflexão do que agora destrói sua alma. Ao vê-lo assim, eu me prometo que não deixarei que aconteça de novo. Estarei aqui para suportá-lo, assim como você esteve lá para mim há tantos anos.

“Olhe para mim. Você sabe que eu não tinha intenção de te ferir, nunca tive. A única coisa que quero é retribuir a amizade que me deu na nossa infância, o apoio que me deu quando eu precisava. Eu vou te ajudar, Dmitri. Estou aqui para você. Confie em mim.”

            Estendo minha mão, convidando-o a se erguer do chão, onde esteve caído há provavelmente horas. Sorrio, e então, por um momento, as paredes, as estátuas, as vidraças parecem menos cinzentas, mais coloridas, vivas. Seu olhar se ergue como se para ver se eu não estava brincando, e vejo a cor se espalhando pelo templo, pelo corredor por onde vim. O tempo parece começar a passar novamente, as folhas antes paradas no ar continuando seu caminho em direção ao chão do lado de fora. O Sol agora brilha mais forte, mais intenso, e sua luz, filtrada pelo vidro colorido das vidraças, inunda a sala. Você também sorri, como costumava sorrir na nossa infância (se é que sorria de verdade para mim, ou já estava remoendo seu ódio tão cedo?), e por um momento, tudo parece dar certo.

            Mas então você cospe, e seu olhar retoma o ódio costumeiro. Não sei o que me dói mais, ter visto aquela sua expressão de tristeza e perdição há meros segundos atrás, ou rever essa expressão de puro ódio agora. Você não diz nada, também, não precisa. A mensagem está mais do que clara quando cerra seus olhos, e com um último olhar raivoso, desaparece, deixando atrás nada mais do que meras lembranças. As cores somem, o ar pára, o tempo congela.

            Dessa vez, os gritos que ecoam pelos corredores cinzentos e vazios são meus.

No comments:

Post a Comment